Confesso que estava apreensivo. Temia encontrar um lugar barra pesada cheio de pessoas ameaçadoras. Acho que era preconceito. Minha ideia era passar uma noite em um abrigo para moradores de rua em algum lugar da cidade de São Paulo e, para isso, decidi ir à praça da Sé e usar os serviços existentes da prefeitura de busca de alojamento.
Eu me posicionei na frente de um bar chamado Pit Stop, na esquina com a rua Benjamin Constant, e liguei para o número 156 –pelo qual é feito o encaminhamento para um albergue com vagas disponíveis. Normalmente, eles mandam uma van que vai pegando as pessoas pelo caminho. Eu vestia uma camiseta vermelha para chamar atenção e não perder a carona no veículo.
A atendente do 156 me pediu várias informações. Primeiro meu CPF e, depois, perguntou como eu estava vestido. Usava jeans com um rasgo no joelho e levava um bolsa verde oliva nas costas. Ela quis saber se eu carregava um cobertor, embora não estivesse frio. Já passava das 15h e o relógio da praça marcava 26°C.
Esperei mais ou menos uma hora em frente ao bar e contei pelo menos quatro vans da prefeitura passando pela via. Mas nenhuma parou. O prazo que a atendente do 156 dá para o atendimento é de 3 horas. Mesmo assim comecei a achar que minha estratégia não ia dar certo. Foi quando um grupo de quatro assistentes sociais vestindo coletes verdes me cercou na calçada. Me identificaram justamente pela camiseta vermelha e me perguntaram se eu era o José —meu nome é José Vicente— e o que eu buscava. Respondi que queria um abrigo.
“E por quê?”, perguntou aquela que parecia ser a líder dos assistentes.
Respondi que buscava um lugar para comer alguma coisa e dormir. Ela falou que havia uma vaga para pernoite ali perto, no Centro de Convivência Rodrigo Silva, na praça Carlos Gomes, na Liberdade. “Mas é só um pernoite”, reforçou.
O lugar ficava a 500 metros de onde eu estava, e ela me deu um papel. Me orientou a apresentá-lo na recepção do albergue. Fui caminhando intrigado com o que ia encontrar e, ao descer uma escada, me deparei com um portão de ferro aberto em um dos lados e que dava para um pátio, onde havia pelo menos uma centena de pessoas, a maioria com mochilas.
Algumas se juntavam em pequenos grupos e outras estavam sozinhas. Havia uma fila do lado direito do pátio e descobri logo, perguntando para um sujeito que estava ali parado, que se tratava da espera para o almoço.
Descobri também onde era a recepção e fui para lá com meu papel para saber o que fariam comigo. A funcionária falou asperamente que minha situação só seria resolvida às 19h, no próximo turno, e que eu deveria esperar. Acendi um cigarro, sentei numa mureta e me senti meio perdido. Acabei decidindo me juntar à fila do almoço e matar a fome, que começava a apertar.
A situação era desoladora. Fiquei mais ou menos uma hora na fila, reparando que os bancos e cadeiras de plástico espalhados pela pátio começavam a ser transferidos para o refeitório, que ficava na parte dos fundos. De maneira improvisada, estava se armando o ambiente para a refeição e os próprios usuários do lugar se uniam aos funcionários para ajudá-los. Nessa altura, havia por ali um pouco mais de cem pessoas. Era gente de todos os tipos, jovens de 20 ou 30 anos, idosos, travestis, casais com bebês empurrando carrinhos, dependentes químicos, mas todos convivendo sem gritaria ou agressividade. Cada um na sua.
Quando a fila do almoço começou a andar, no meio da tarde, queria saber o que iria encontrar para comer e se teria um lugar para sentar. Ninguém furava fila e não se notava ansiedade. Entrei no salão do refeitório e fui em direção a uma portinhola onde eram distribuídas as marmitas lacradas. Peguei a minha e busquei uma cadeira no fundo do salão. Ao abri-la me deparei com uma porção farta de arroz e feijão, acompanhada de abóbora cozida e linguiça. Provei e achei palatável. Comi tudo.
O regime do albergue é controlado. Há recipientes para o lixo e um lugar específico para fumar. O banheiro é razoavelmente limpo e há várias torneiras para beber água. Também estão disponíveis quatro máquinas para lavar roupa. Para usar o chuveiro é preciso formar fila. Uma funcionária administra o papel higiênico em uma barraca na frente do banheiro e dois vigilantes mantêm a ordem no lugar.
A prefeitura informou que o núcleo de convivência disponibiliza atividades direcionadas e programadas para o desenvolvimento de sociabilidades e que possui um quadro de 17 funcionários, entre gerente de serviço, assistente técnico, assistentes sociais, orientadores socioeducativos e agentes operacionais para cozinha e limpeza. O local é administrado por organização social por meio de repasse mensal de R$ 285.314,55.
O maior perrengue são as filas, mas depois do almoço a maioria das pessoas vai embora e o lugar se esvazia. Fiquei no canto dos fumantes. Não fui importunado em nenhum momento e ninguém se aproximou para fazer perguntas.
“E aí, coroa?”, foi o máximo que me disseram.
Entre as 16h e as 18h fiquei perambulando entediado pelo pátio, lendo os grafites que se espalhavam por todos os lados e me preparando para entrar numa nova fila. A próxima era a de televisão para assistir ao programa “Cidade Alerta” na TV Record. Mais uma vez era preciso descolar uma cadeira no pátio e levar para o salão do refeitório para sentar. Nessa altura havia pouco mais de 50 pessoas no Rodrigo Silva e os portões estavam fechados. A maioria dos que ficaram era jovens, com não mais do que 30 anos. Não se via bebida alcoólica, tampouco uso de drogas no local.
O que me deixava intrigado nessa altura era saber onde eu dormiria. Não há quartos ou camas nas instalações. Depois do “Cidade Alerta”, a minha curiosidade se desfez. Uma porta ao lado do refeitório se abriu, uma funcionária se sentou diante de uma mesa com algumas folhas de papel na mão e nomes começaram a ser chamados. Cada pessoa que era convocada pegava uma pequena cama metálica de armar com estrado de náilon e um colchão de vinil e se dirigia para o refeitório, que virou um dormitório improvisado.
Dentro da cama metálica de armar, havia um lençol, um cobertor e um travesseiro de vinil. Em ordem, as camas eram colocadas junto às paredes e as pessoas se acomodavam. Os primeiros nomes a serem chamados foram os das pessoas que dormiam lá normalmente. Meu nome ficou entre os últimos e foi quando tive oportunidade de entregar o papel que a assistente social havia me dado. Peguei minhas tralhas e arrumei minha cama num dos cantos do refeitório. Por precaução, havia levado uma fronha.
A televisão continuou ligada mais ou menos até as 20h. Um pouco antes disso, a mesma funcionária que cuidava das camas chamou meu nome para saber se eu queria jantar. Declinei, pois já estava preparado para dormir. Ainda tinha algum receio de roubo e coloquei meu celular e minha carteira numa dessas cintas de viagem com um zíper. A mochila deixei ao lado da cama.
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Peguei rapidamente no sono e acordei por volta das 5h30 com o barulho que as outras pessoas que despertavam começavam a fazer. O limite para se levantar é 6h, quando o salão precisa ser preparado para o café da manhã. Levei minha cama de armar e as outras coisas para a sala de onde tinham sido retiradas e fui encarar a fila para a primeira refeição diária. Me explicaram que havia uma fila para quem quisesse pernoitar naquele dia —é preciso se cadastrar logo cedo— e outra para quem quisesse tomar banho. Como não queria nem uma coisa nem outra, me mantive onde estava.
O café da manhã foi servido às 7h20. Basicamente, um pão com margarina e um café com leite. Depois de terminar de comer fiquei sabendo que chegaria uma multidão para fazer a refeição. Os portões ainda estavam fechados e tinha uma guarda na porta. Às 8h, as pessoas começaram a entrar. A primeira leva foi de idosos e, na sequência, vieram moradores de rua, alguns com cachorros, dependentes químicos com cobertores na cabeça e, mais uma vez, um casal com um bebê no carrinho.
O pátio voltou a ficar lotado com mais de cem cidadãos que formaram uma grande fila. Nessa hora, achei que minha experiência no Centro de Convivência Rodrigo Silva tinha terminado. Dei um cigarro para um homem que me pediu, virei as costas e fui embora.