Um gradil vazado, com os principais orixás e símbolos do candomblé, dá as boas-vindas na chegada ao Ilê Axé Iyá Nassô Oká, o Terreiro da Casa Branca, em Salvador. Mais antigo do Brasil, o espaço completa 40 anos como monumento negro tombado e patrimônio histórico no país.
A caminhada até essa conquista, contudo, foi árdua e envolta em preconceitos, diz à Folha Mãe Neuza Conceição Cruz, líder do centro religioso de tradição Ketu na capital da Bahia.
“Acompanhei todo o processo como filha de santo da casa e vi de perto os desafios e as dificuldades”, diz. “O tombamento é muito importante para as religiões de matriz africana e demonstrou a importância do candomblé para a Bahia. Mas isso só não é o suficiente. Os terreiros de candomblé precisam de atenção.”
Mãe Neuza é a nona ialorixá a comandar o espaço, escolhida pelos orixás que o governam, e assume a função após a última gestão de Oxum.
Localizado no bairro do Engenho Velho da Federação, o Terreiro da Casa Branca foi fundado em 1830 e remonta à liderança de três mulheres africanas —Iyá Detá, Iyá Akalá e Iyá Nassô, de nação Nagô.
Antes, funcionava numa roça ao fundo da Igreja da Barroquinha, centro histórico da capital baiana.
O tombamento como patrimônio cultural nacional data de 1984, quando já ocupava o endereço atual, uma área de 6.800 metros quadrados.
De acordo com o antropólogo Ordep Serra, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA (Universidade Federal da Bahia), tal reconhecimento rompeu com uma perspectiva colonial e eurocêntrica da elite branca.
Um dos responsáveis pelo projeto que culminou no tombamento do terreiro, Serra diz que até então apenas igrejas, catedrais, palácios, sobrados e fazendas eram catalogados como monumentos importantes pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
À época, ele recorda, técnicos do órgão ficaram “escandalizados” diante da proposta de tornar o bem religioso um patrimônio cultural.
“A perspectiva do Iphan era muito atrasada, tinha dificuldade de considerar monumento o que não fosse obra de elite. O que não fosse pedra e cal, pedra e mármore”, afirma.
O tombamento da Casa Branca, assim, descortinou a valorização de tantos outros importantes terreiros, a exemplo do Gantois, de Mãe Menininha (1894-1986), e do Ilê Axé Opô Afonjá, de Mãe Stella de Oxóssi (1925-2018).
É tida como a “Mãe de Todas as Casas”, como disse o poeta Francisco Alvim, evocando o pesquisador baiano Edison Carneiro (1912-1972).
Mesmo sob proteção, porém, o templo histórico do Engenho Velho continua a ser alvo de intolerância. Nos últimos 23 anos foram ao menos 40 denúncias de invasão do seu território levadas às autoridades.
No caso mais recente, um imóvel irregular de cinco andares foi erguido dentro dos domínios da Casa Branca. Em setembro de 2023, a Justiça Federal concedeu uma liminar (decisão provisória) determinando a demolição de dois dos cinco pavimentos da construção, mas a ordem foi descumprida.
Sem uma saída amigável, a prefeitura ajuizou uma ação para uma resolução compulsória do problema, o que inclui a demolição da estrutura e a construção de um memorial do templo religioso.
“Foi o que deu um alívio, de certa forma, à comunidade”, diz Isaura Genoveva Neta, advogada do terreiro e ekedi —cargo feminino ocupado por mulheres que não incorporam.
Apesar dos percalços que vê como racismo ambiental, ela diz ser necessário celebrar os 40 anos do tombamento.
“Primeiro porque é um marco histórico, o primeiro monumento negro tombado. Depois, um marco de enfrentamento, de resistência de um povo, de uma coletividade de pessoas que foram escravizadas. E o candomblé é resultado disso”, afirma.
Intitulado “O Corpo da Terra”, um documentário recém-lançado por ocasião da efeméride convida a uma reflexão acerca da resistência dos terreiros de candomblé como precursores da arquitetura afro-brasileira e do ativismo ambiental.
“O filme propõe um diálogo para que as novas gerações saibam da luta para a continuidade do candomblé e tenham repertório crítico, político e afetivo para o que é a construção da identidade cultural do Brasil”, afirma Day Rodrigues, roteirista e diretora da obra.
Segundo o presidente do Iphan, Leandro Grass, o tombamento do terreiro baiano inaugurou um novo momento do que passou a ser patrimônio cultural no país.
Hermano Guanais e Queiroz, superintendente do órgão na Bahia, acrescenta que todo o processo resultou num aumento dos esforços para identificar e, sobretudo, valorizar outras expressões culturais associadas às comunidades afrodescendentes.