Flip 2024: Juan Cárdenas pensa impunidade latino-americana - 12/07/2024 - Ilustrada - Rádio Graça e Paz

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Flip 2024: Juan Cárdenas pensa impunidade latino-americana – 12/07/2024 – Ilustrada

“Como poderíamos chamá-lo? Gênero de fazenda?”, pergunta um personagem de “O Diabo das Províncias” sobre o filme que está rodando, numa das várias cenas que também funcionam como comentários sobre o próprio romance.

Ele segue elencando obras aparentadas, como o colombiano “La Mansión de la Araucaima” e o venezuelano “Dona Bárbara” —até chegar a “Casa-Grande e Senzala”, inserindo o Brasil numa América Latina de que costuma se distanciar.

Seu autor, o colombiano Juan Cárdenas, diz se sentir mais ligado a nós do que a qualquer país que fale espanhol. “Muitas vezes olho aí para entender coisas que acontecem na Colômbia e vice-versa”, aponta o escritor, tradutor de Machado de Assis, durante entrevista feita por vídeo, em ótimo português.

Cárdenas já esteve no Brasil algumas vezes, mas seus laços estão prestes a se estreitar mais. Não só pela sua presença agora anunciada na Festa Literária Internacional de Paraty, em outubro, mas pela edição de seu primeiro livro por aqui, o aflitivo “O Diabo das Províncias”.

O romance, fraturado em retratos como um biombo chinês, oferece vislumbres de uma narrativa em vez de algo inteiriço. Um biólogo chega a sua cidadezinha natal, fracassado, para dar aulas num internato de meninas e acaba lidando com tensões raciais, gravidezes insólitas de adolescentes, um traficante boa-praça e um idoso de lábios femininos que surge como a figura mais assustadora do livro.

“Não há melhor maneira de matar uma história do que complicá-la”, diz um jornalista em meio à trama. “A atenção do leitor vai se dispersando nas mil e uma ramificações de uma trama cada vez menos tensa, cada vez menos interessante, e é dessa forma, senhoras e senhores, é com essas artimanhas dos prosadores e contadores de histórias, que a impunidade é fabricada neste país.”

Cárdenas se diverte ao ouvir esse trecho de ironia autoconsciente na entrevista (“muita gente fala que o livro é uma bagunça, eu aceito as críticas”), mas o fato é que ele ilustra um de seus temas primordiais. O romance, diz o autor, pode ser descrito como pequenas cenas que constroem uma “rede conspiratória” em torno do biólogo sem nome.

“Gosto muito da ideia de dar prestígio intelectual às conspirações, elas estão por toda parte. O que não quer dizer que tem um mestre controlando tudo. É mais obscuro. Então eu tinha que fazer essa disposição de episódios, de um tecido de histórias imbricadas.”

Uma das razões pelas quais o romance não desmorona é sua fé inabalável na trama detetivesca, mantendo os leitores na linha o tempo todo e fugindo da pós-modernidade como quem foge da cruz.

A literatura de Cárdenas opera num tom entre Roberto Bolaño e Juan Rulfo, e não é à toa que tem alcançado prestígio internacional —sua tradução foi finalista do National Book Award, nos Estados Unidos— sem deixar os pés saírem da América Latina.

Mas ler “O Diabo das Províncias” como um livro sobre a Colômbia é um erro, segundo o autor. “Uma história como essa poderia acontecer na Tailândia, na Indonésia, em países da África. O capitalismo periférico produz fenômenos muito parecidos.”

Ele quer dizer lugares que viveram a exploração colonial, organizando suas sociedades em torno de monocultura e exportação. Mas o que isso tem a ver com literatura?

“Nós partimos do conceito de que a ficção é universal, mas ela tem uma maneira de se apresentar em cada realidade”, diz. Não é por acaso que o terror tem se desenvolvido bem como gênero em países latinos, diz ele. Histórias como as nossas acontecem sobre um piso acumulado de camadas de trauma histórico.

“O folclore dos nossos países, os monstros e lendas populares, são ao mesmo tempo a vanguarda. As duas coisas se fundem de maneira muito particular. Estou pensando no modernismo brasileiro, em Tarsila do Amaral, na antropofagia, em Gilberto Freyre. São debates muito vivos e atuais.”

É por isso que, quando Millôr olhava o horizonte, via um enorme passado pela frente.

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